Neste exercício nos propomos a escrever
cartas, conscientes de que elas seriam
extraviadas, de modo a construir espaços e
diálogos intermediários destinados a alguém,
alguma coisa ou um recorte dessa comunidade
de cinema. Como escreve Vinciane Despret,
“cartas são um testemunho material de laços, e
elas fabricam laços um pouco excepcionais,
dado que são perenes e que cada leitura as
reativa”.
por Geo Abreu, Giuliana Zamprogno, Maria Sucar,
Fábio de Carvalho Penido, Luan Santos,
Luiz Fernando Rodolfo, Ingá e Fabio Rodrigues.
[carta 3]
Oie
Essa semana tá puxada por isso não consegui ouvir teus áudios ainda mas, isso tá no fundo da minha memória. Tanto que abri dois documentos e tenho tentado trabalhar neles em conjunto, um sobre teu filme e outro sobre os filmes que tenho visto no Festcurtas BH.
Lembra que a gente falou sobre como filmes de invenção tem espaços muito restritos nos festivais? Que a gente as vezes não sabe onde inscrever? Encontrei alguns amigos pros teus filmes e das nossas amigas esses dias. Filmes Indianos, Húngaros, Africanos, Mineiros. Inclusive esses filmes todos deveriam conversar porque de alguma forma – tem essa palavra né, zeitgeist– a antena do cinema parece estar captando algo, parece estar dizendo algo que não é mais da ordem da representatividade ou da urgência, e sim da maturação. Do tempo que leva trabalhar a terra, da memória da água, do sentimento das árvores, do respeito com o que é alheio a nosso entendimento.
Outro dia, falando com outra amiga sobre Titane, esse filme que curiosamente ganha textos empolgados quanto escritos por mulheres e textos meio muxoxos quando escritos por homens, de uma virada ontológica a partir de um certo trânsito entre perspectivas: a mecanização da humanidade como objetivo completo, os animais e seres mais que humanos assumindo posição de pessoa e as máquinas naquele esquema de sempre, emulando a força bruta que bestializa.
Queria falar mais, preciso correr.
Te mando um áudio de 10 min. assim que puder ;*
*
[carta 15]
Cara,
Nem sabia que era a voz do Jonas Mekas. Isso me fez expelir um certo “ah” depois de saber, mas não me surpreende que é ele falando aquilo tudo em Notes for a déjà vu. O nome de quem fez é Colectivo Los Ingrávidos, gostei tanto que cheguei a pesquisar depois.
E acho algo curioso nas minhas anotações: a palavra “endereçamento”. Lembro que ela apareceu sem eu nem entender muito bem porquê, mas deixei lá, vai quê. E agora te escrevo - meu destino, teu endereço - e na minha cabeça isso é uma espécie de déjà vu, com nome de antecipação.
Também dentro dessas mesmas anotações estão: “A verdade tem estrutura de ficção (Lacan)”; “não é muito sobre real x fake mas sim sobre a experiência do evento e a memória do evento, sendo essa memória nada mais do que uma imagem também"; "depois entra numa trip no domínio do sagrado, tive a impressão de que a voz muda também, dessa parte pro fim tive mais dificuldade".
É que pra mim esse filme tem a mesma estrutura do piscar de olhos. Ele toma o contorno de um sonho em que as palavras são circulares, mas as imagens, que passam como fragmentos acelerados, nunca se repetem. Por isso que não é memória o que a gente vê, como diz o Mekas, é o real acontecendo. Aquela coisa de que não se passa duas vezes no mesmo rio, porque nem as águas nem nós somos os mesmos.
Sempre que vou à praia fico alguns minutos boiando no mar. Meu único ritual: me dissolver no azul e esquecer meu nome. No filme essa cor muda, mas sinto que a ideia da galera é a mesma.
Um beijo,
Bicho anônimo
este texto foi produzido como parte da oficina Corpo Crítico – Entre Políticas da Amizade e Ensaios da Traição, ministrada por Ingá e Fabio Rodrigues Filho, durante o 23º FestCurtasBH.
Comments